Estando no Japão há algum tempo, tenho percebido diariamente como a relação entre vergonha e honra interfere no comportamento desse povo e como influencia no entendimento do Evangelho. Nossa igreja completou quatro anos em 2023 e, ao longo desses anos, por ser uma igreja que lida predominantemente com japoneses, temos lidado de perto com dilemas e desafios que envolvem essa cultura. A sociedade japonesa, infelizmente, se orienta predominantemente pela vergonha; isso se deve ao fato de haver uma forte orientação em torno da manutenção da harmonia do coletivo — portanto, tudo que destoa do comportamento previsto pode trazer vergonha.
O que vemos no dia a dia é a manutenção de comportamentos que não perturbem a ordem ou a harmonia coletiva. Podemos ver exemplos disso nas atitudes mais básicas, como, por exemplo, o silêncio em transportes públicos. Aqui, é pedido para que as pessoas não falem ao celular ou em voz alta quando estiverem em transportes públicos. Não há nenhuma espécie de punição para quem não seguir a regra; entretanto, a grande maioria das pessoas a respeita, pois, nesse caso, se destacar por ter um comportamento destoante da maioria pode causar constrangimento.
Na maioria das escolas ocidentais, principalmente em instituições públicas europeias e americanas, não há a exigência de uniforme; portanto, os alunos podem, em sua maioria, vestir as roupas que desejarem. Aqui, mesmo em escolas públicas, há a exigência de uniforme, havendo também um padrão com relação à mochila usada, ao corte e à cor de cabelo, ao não uso de maquiagem e acessórios. O mesmo pode ser visto nas vestimentas que a maioria das pessoas utilizam para trabalhar — há praticamente padrão de cor e estilo predeterminado a depender do tipo de trabalho exercido.
Coletividade
Isso tudo diz respeito à manutenção da harmonia coletiva, em que as pessoas pertencentes ao mesmo grupo possuem o mesmo “valor social”. Há, portanto, um forte encorajamento pela preservação da coletividade. Assim, o cidadão se comporta individualmente, sempre visando a manutenção do padrão coletivo. Ele não é visto apenas como um indivíduo, mas como uma peça de uma máquina coletiva. Para que a máquina mantenha seu funcionamento pleno, é necessário que cada peça esteja encaixada e funcionando de forma esperada. Assim, as pessoas mantêm a honra ao se comportarem de acordo com suas posições na sociedade. E, pelo fato do comportamento individual estar subordinado à coletividade, o que se percebe é uma forte orientação das pessoas pelo “o que os outros pensarão de mim?”.
Essa forte consciência em relação ao próximo, muitas vezes, acaba funcionando como uma trava que impede muitos de emitirem suas verdadeiras opiniões ou de serem mais espontâneos. Uma membra da nossa igreja, assim que se converteu, nos contou que possuía uma condição antiga de saúde que ninguém da sua família sabia — nem mesmo seus pais e nem seu marido. Ou seja, ela passou anos de sua vida sofrendo com algo, e ninguém ao seu redor sabia do seu sofrimento. Ela não conseguia se abrir a respeito do seu problema para ninguém ao seu redor.
Essa busca pela manutenção da harmonia gera, portanto, uma noção extrema de respeito ao próximo (uma espécie de harmonia relacional), no sentido de se buscar fazer o máximo para não haver a perturbação da paz do outro. Por isso, nas áreas residenciais, há a apreciação do silêncio. Evita-se fazer barulhos considerados excessivos que possam trazer algum desconforto aos vizinhos. Porém, esse cuidado com o próximo vai além de uma simples manutenção do silêncio — até a forma de se emitir uma opinião ou até mesmo de se negar um convite é influenciada por essa ideia. Muitas vezes, deixa-se de ser direto para não ferir o outro. Um convite que, muitas vezes, poderia ser recusado com um simples “não”, pode ser ignorado, para que não haja confronto.
Em nossa igreja, já houve casos em que, ao ser convidado para compor a escala de um determinado departamento, a pessoa, por se sentir pressionada ou muita atarefada, quis recusar o convite. Entretanto, por receio de desapontar, a pessoa preferiu faltar ao culto em que estava escalada do que recusar a escala ou revelar que estava se sentindo sobrecarregada. Muitas vezes, confessar os próprios sentimentos pode ser visto como sinônimo de fraqueza; então, a opção encontrada é fugir ou guardar para si.
Evitando conflitos
Apesar de o povo japonês ser prestativo e ter a gentileza como algo enraizado em sua cultura, ao se prezar pela manutenção da harmonia, corre-se o risco de se ter uma sociedade em que os indivíduos prefiram guardar tudo para si em vez de pedir ajuda. Além da vergonha de lidar com a opinião alheia, pedir ajuda pode incomodar o próximo. E tudo que causa incômodo deve ser evitado. Oferecer ajuda também não é um pensamento simples. Ao oferecer ajuda, o indivíduo pode estar ferindo, mesmo que de forma inconsciente, a honra do necessitado, trazendo vergonha para ambos.
Portanto, tendo em vista o cuidado com a honra do próximo, é melhor que cada um permaneça em seu “quadrado”. Isso pode soar um comportamento individualista; entretanto, como mencionado anteriormente, o comportamento do indivíduo na sociedade japonesa se orienta em manter uma aparente harmonia. Assim, o respeito ao espaço de cada indivíduo é essencial para que cada um continue mantendo seu papel na sociedade e para que conflitos e confrontos sejam evitados — mesmo que isso mascare as aparências. O governo, por sua vez, possui diversos programas de auxílio; porém, não são amplamente divulgados (como vemos no Brasil, por exemplo). A pessoa que necessita do auxílio em questão deve buscar e se informar.
A ideia de se respeitar a paz do próximo, da forma como ela se apresenta na sociedade japonesa, a princípio, pode parecer harmônica e nobre; entretanto, esconde profundos problemas. Além de fazer com que as pessoas tenham dificuldades de se abrir até para os mais próximos, isso acaba causando uma sociedade em que indivíduos não estão atentos às necessidades uns dos outros. Gera-se, então, um efeito reverso ao cuidado e à harmonia que se procura manter.